quarta-feira, julho 05, 2006

Aqui

Ai, que não consigo mais abrir os olhos… É tudo tão difícil, tão duro, tão custoso…
Á minha volta todos se reúnem, esperando o meu fim, estão tristes, estão cansados por todos os trabalhos e por toda a carga emocional com a têm sido expostos… E eu, que faço, que sinto, como estou, o que penso? Estou aqui, só?
A vida deu-me muito, tanto que não sei se fui capaz de retribuir em um décimo, mas agora que revejo minha vida, que contemplo o filme da curta passagem por este mundo algo me diz que não terei sido capaz de aproveitar tudo o que poderia ter ganho e assim acabei por perder mais… Será que fui completamente feliz, não terei em vários momentos feito opções que se revelaram as menos correctas? Terei sabido reagir bem a todas as situações que se foram deparando, terei sido capaz de retribuir todo o amor que recebi, terei deixado algo que perdure a minha parca passagem terrena? Mesmo com todos estes pensamentos, o facto é que à minha volta sinto a presença de toda a minha família: a minha esposa, essa grande mulher que me amou toda a sua vida, que me deu tudo o que tinha e não tinha, mas principalmente concebeu os meus três filhos, essas belas criaturas que me encheram de alegrias todos estes anos e que permitiram por mais de uma vez reconhecer que nem tudo foi em vão. Todos eles me preencheram as medidas, todos eles me tornaram um homem mais completo, mas será que eu lhes soube retribuir?
Aqui deitado, incapaz de qualquer expressão para o exterior, preso no meu próprio corpo, depois daquele acidente, ouço, sinto-os, sofro com o seu sofrimento e mais porque os faço sofrer, se ao menos eles soubessem como eu os amo, se ao menos lhes pudesse dizer isso, que toda a vida os amei, que não há mais ninguém no mundo a quem deseje mais amor, se ao menos por um segundo pudesse abrir os olhos e, nem que fosse pela última vez, pudesse ter um pouco dos seus olhares, ter mais um pouco deles…
Agora só me restam as imagens das minhas recordações no limbo dos meus sonhos, quando nem sei se durmo se apenas estou mais uma vez inoperante na minha inoperância.
Abalo agora novamente para o meu próprio mundo, deixo tudo o que me rodeia novamente, caio outra vez, no mundo dos meus sonhos, ou das minhas recordações, nem sei… De fundo, mantém-se apenas as vozes, agora incompreensíveis da minha família e mais baço ainda o som daquela música que puseram a tocar pois sabem quanto eu gosto daquela melodia. Este mergulho conduziu-me aquele dia em que conheci a minha mulher, era um jovem estudante de engenharia, e ali estava eu na flor da minha juventude. Nesse dia fui como fazia muitos das minhas noites ver estrelas para um monte fronteiro à minha aldeia. Naquele dia, como todos os outros lá estava ela, mas este foi diferente, não sei se foram as constelações novas da primavera, se foi apenas o estar cansada de esperar… Ela avançou, com o seu andar decidido, com o seu olhar cristalino voltado para mim, os seus cabelos loiros caídos no ombro e ela avançou decidida. Perguntou-me apenas se tinha um mapa das estrelas porque tinha dúvidas acerca de umas estrelas, e eu nem consegui responder. Parecia que algo me amordaçava, senti-me mais uma vez inoperante na minha inoperância…
Acordo. Claro que só eu o sinto. Todos se mantêm à minha volta. A minha esposa está agora a ler em voz alta o jornal do dia. Pelo meio comenta as notícias com um humor fino como nos dias mais felizes de uma das nossas férias… E eu aqui incapaz de responder, de ser eu de deixar esta inoperância que me oprime. Incapaz de retribuir todo o amor que ela me oferece…
Agora espero e procuro apenas ser capaz de ter a humildade de receber esta dádiva gratuita que a vida ainda é capaz de me oferecer. Talvez um dia seja capaz de dar, de retribuir ou apenas deixar a inoperância.

3 Comments:

Blogger Sergio Figueiredo said...

estava a pensar que esse tipo de sentimentos ("ver a vida a passar à frente dos olhos") não me aconteceu. presumo que tenha a ver com o valor que te dás.

12:20 da manhã  
Blogger Luis Fernando said...

Não é tanto um sentimento é mais um sentir, e obviamene não surge assim num qualquer dia...

4:45 da tarde  
Blogger Sergio Figueiredo said...

err...claro que não é num qualquer dia...é só quando sabes que vais morrer naquele momento...

11:25 da tarde  

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