quinta-feira, dezembro 07, 2006

IX: Tróias (1ª parte)

Da rua vinham os sons de todos os dias. O trânsito feroz e desumano ganhava forma na selva urbana. Ali, no interior do quarto ainda escuro, os primeiros raios de sol moldados pelas frestas das persianas lentamente subiam nos lençóis da cama até afagarem os olhos fechados de Helena.
O som mecânico do relógio marcava metronicamente as horas. O despertador soou. A mão de Helena moveu-se,como sempre. Mais um dia arrancava.
Tomada ainda pela entropia do sono, Helena deixou-se ficar mais uns minutos no vale dos lençóis. Após cinco minutos levantou-se. No fim da sua higiene olhou o espelho. Contemplou, lentamente, todas as linhas do seu rosto. A expressão das suas rugas ligeiras que marcavam a sua testa, os seus olhos azuis tenuamente salpicados por toques de âmbar, a sua boca de uma assimetria invulgar e cativante, envolvida por duas suaves elevações animadas por uma cor da mesma natureza que os seus suaves lábios. Assim era Helena, bela e capaz de causar conflitos e duelos, mas só e solitária como outras no passado.
Como sempre saía para o seu emprego. Entregara-se jovem a esta vida, cedo esquecera os sonhos de criança, ainda humildes e puros. Cedo deixou-se enganar pela vida. Agora o rumo eleito livremente nunca a deixaria voltar a ser ou a ver aquela criança que, qual tarefa hercúlea, estimulava o voo das pombas da rua e procurava impedir o seu regresso ao porta-aviões constituído pelo passeio calcetado.
Mais uma vez saía. Hoje particularmente cansada, não por uma noite mal dormida, mas apenas pelo sentimento de indiferença que tudo lhe causava. Andava cansada e desiludida e cada dia era mais difícil acordar e voltar ao mesmo. Cada dia era mais insensível a si, sentindo-se, no entanto, com maior necessidade de se ensimesmar e esquecer o supérfluo do consumismo em que se tinha tornado. O emprego era agora somente trabalho; um trabalho constante de procurar idealizar a venda de novos e desnecessários produtos, mas dos quais Helena desabrochava algum interesse.
O trânsito já dominava o seu reino. Helena apanhou o metro. No meio de tanta gente, sentia-se sempre só. Os olhares que por vezes lhe eram dirigidos, embora aprovadores, eram sempre acompanhados por um sorriso que nunca lhe agradou. A solidão crescia nestas alturas sempre um pouco mais.