sexta-feira, junho 30, 2006

II: Porquê e para quê?

Só tenho duas certezas: vivo e morrerei. Porquê e para quê? Não sei. Sei, que muitos também procuram respostas…

“Uma árvore tem esperança: mesmo que a cortem, volta a rebentar e os seus ramos continuam a crescer. Mesmo que as suas raízes envelheçam na terra e o seu tronco esteja amortecido no solo, ao cheiro da água ela rebenta e produz folhagem como uma planta nova. O homem porém, morre e fica inerte. Para onde vai o homem quando expira? As águas do mar podem acabar, os rios podem baixar e secar, mas o homem que jaz, não se levantará. O céu passará, e o homem não vai despertar, nem acordar do seu sono.”

do Livro de Job

terça-feira, junho 27, 2006

O Homem é um ser inteligente, sem dúvida, mas não tanto quanto seria desejável.”

José Saramago

Nevoeiro

Está nevoeiro, no meio do nada, ouve-se um silêncio gélido. Sinto desconforto na face e elevo a mão lá procurando afastar esse nervosinho miúdo que me embala. Olho a mão negra de fuligem que envolve a minha cara e na ponta do indicador uma pestana branca. Ouve-se um apito…
De sobressalto acordou. Este sonho agastava-o há vários meses, cada vez com mais frequência. Pegava agora num dos vários livros que tinha trazido da biblioteca da mãe antes de sair para a recruta e que tinham sido a sua companhia nestes poucos meses de treino. Desta vez foi o romance de Hardy. As saudades de casa a isso impeliram, e as paisagens verdes descritas por Hardy, de uma Inglaterra provinciana eram o mais perto das recordações caseiras que conseguia ter no momento…
O comboio continuava o seu caminho cada vez mais próximo da estação final. Daí o caminho final de quarenta quilómetros seria feito a pé em conjunto com os seus companheiros de batalhão. Ao seu redor só desalento, todos tinham consciência ao que iam: morrer. Tinha sido assim, com a maioria dos seus antecessores e agora eram cada vez mais novos e menos treinados os que apareciam. Ele sentira-o na pele quando no início da guerra recebera a notícia que o seu irmão mais velho tinha morrido na batalha de Gallipoli, mas eram também as notícias que chegavam do cheiro a morte do local para onde iam: o Somme. Desde o início dessa batalha já tinham tombado mais de trinta mil irmãos de armas e tudo por um punhado de metros. Era para lá que agora caminhavam, para o fim…
Olhava agora umas fotos. A sépia realçava o louro dos cabelos da mãe que o abraçava a ele e ao irmão. Ele louro como a mãe, o irmão de cabelos escuros como o pai. Pormenor que nem ele percebia porque o assaltava agora à ideia. Rapidamente o pensamento fugiu para a quinta e os trabalhos que agora lá decorreriam. Estamos em fins de Agosto, é tempo de preparar o silo para o Inverno e pôr grande parte dos terrenos para o descanso invernal. Para ele era tempo de se preparar para a defesa no Somme.
O inglês chegou finalmente ao local malfadado. Nestes primeiros dias a ordem era para segurar posições, o seu trabalho seria de fazer rondas nocturnas, a poucos metros da linha inimiga.
O alemão tinha ordens para ajudar a segurar a siegfried stellung. Era assim que lhe chamavam os alemães. Não era mais que um longo sistema de trincheiras nos quais os alemães procuravam suster o avanço lento dos ingleses e diga-se que estavam a conseguir. A posição a segurar agora era a pequena colina de Guillemint. Do outro lado ouvia os passos. Dizer do outro lado é claramente um eufemismo, estamos a falar de dez metros de distância do ponto que lhe coube ser guarda. Lançou a senha para confirmar se era dos seus, o coração batia mais rápido, as mãos ficaram húmidas e do outro lado ouviu como resposta uma interjeição em língua estanha. Não era um companheiro! Mas do outro lado surgiu uma interjeição agora em francês, língua “neutra” nesta batalha.
E assim, começaram a trocar ideias aproveitando a calmia reinante habitualmente nas suas horas de ronda. Falavam de tudo menos do que faziam ali, discutiam Nietzche, Kierkegaard, a vida nas suas aldeias, as namoradas em língua neutra aos dois. E assim, continuaram por três dias. No sítio mais improvável, sob um céu sempre descolorido de estrelas por vezes serpenteado apenas por explosões tinham encontrado um irmão…
Hoje é manhã de 2 de Setembro, como habitualmente o inglês vai descansar por poucas horas antes de voltar à ronda nocturna e às suas discussões filosóficas ou simples comparações das coisas mais simples e deliciosas da vida.
O alemão volta pelos longos caminhos da sua trincheira. No ar ronda um avião de reconhecimento, ao reparar em movimento inimigo lança uma bomba. Não acerta no local exacto de passagem mas o clarão tão próximo praticamente o cegou, e o calor queimou-lhe a cara na totalidade, deixando a sua cabeleira loura irreconhecível…
Nessa noite não houve discussões, o inglês procurou adivinhar o resultado provável do seu irmão recentemente conquistado, mas a única solução encontrada foram as consequências habituais da guerra...
Na madrugada seguinte ao voltar da sua ronda ouve novas ordens. Nesse dia seria o assalto ao Guillemint. Todos eram requisitados inclusive os da ronda nocturna. Hoje não haveria descanso
O alemão embora quase sem ver foi recolocado, agora atrás de uma MG 08, sem precisar de ver muito, era um trabalho que ele se sentia capaz de executar na perfeição, só teria que saber encaminhá-la para disparar em todas as direcções, de forma a causar o máximo de baixas possíveis no inimigo em caso de ataque
O inglês ainda meio a dormir deslocou-se para o posto de onde deveria sair quando ouvisse o apito. Era uma manhã fria, com nevoeiro e embora nada visse sabia que o inimigo estava apenas a alguns metros de distância, com tanto medo como ele, com tanto para dar e criar para o mundo como ele. O sono atacava, levou a mão à cara tentando despertar um pouco os seus olhos. Ao descer a mão reparou que no meio da fuligem que envolvia a sua mão estava uma pestana na ponta do indicador. Noutras situações pediria um desejo mundano, hoje nem sequer pensou, o único interesse era sair daquele inferno, morto ou vivo. Olhou novamente em frente, ali na terra de ninguém teria que tentar “sobreviver”, a frente era o único caminho, o regresso antes de ordem era suicídio porque tal era visto como traição e a pena era imediatamente aplicada, em frente suicídio era…
Colocado com ajuda sobre a metralhadora, o alemão aprontava-se, em princípio não haveria problema, os últimos dias tinham sido calmos sem ataques de tal forma que aproveitando a calma, depois do susto inicial tinha criado um amigo secreto…
O apito soou, da trincheira inglesa saltaram todos os bravos jovens em direcção ao nada escondido no nevoeiro ouvindo o apito ao longe soaram as ordens de disparo ininterrupto, o barulho era agora ensurdecedor, não via, não ouvia, não sentia, no ar só o cheiro de pólvora queimado, as balas silvavam no ar passando de forma completamente aleatória a uns apanhou logo à saída outros ainda caminharam uns passos antes de serem atingidos, o inglês ao primeiro passo tombou, tropeçou num corpo que se estendia no chão atrás de si tombou outro mas por bala. Olhou em redor o pouco que via era aterrador, irmãos de armas tombavam em todos os lados poucos conseguiam caminhar mais que dois passos e esses era só para cair um pouco mais à frente, era inútil, muitos já nem saiam das suas trincheiras, mas o resultado era o mesmo, só tombavam com aço inglês. Toldado pelo medo apertou junto ao peito a arma até aí inútil e levou as mãos negras até aos olhos. Por momentos estava em casa, cheirava a terra depois das primeiras chuvas outonais em terra seca, recordava as histórias narradas pela mãe, as brincadeiras com o irmão, as conversas com o mais recente amigo sobre a importância de toda aquela mortandade e a razão da sua existência. Acordou novamente, o apito de regresso ainda não tinha soado, ainda toldado pelo medo levantou-se e avançou, deu um dois três quatro passos até ser fulminado. O alemão disparava ainda em todas as direcções e assim continuou por mais cinco minutos até terminar o primeiro ataque. Dessa forma passou todo o dia atrasando contínuas investidas até que foi ficando mais lento, mais lento, até não conseguir mais e o Guillemint cair e com ele todos os irmãos. Não viu, não ouviu o sofrimento, só o cheiro a pólvora e a morte.

Guernica, Pablo Picasso 1937

Preparação

Now entertain conjecture of a time
When creeping murmur and the poring dark
Fills the wide vessel of the universe.
From camp to camp, through the foul womb of night,
The hum of either army stilly sounds,
That the fix’d sentinels almost receive
The secret whisper of each other’s watch.
Fire answers fire, and through their paly flames
Each battle steed, in high and boastful neighs
Piercing the night’s dull ear; and from the tents
The armourers accomplishing the knights,
With busy hammers closing rivets up.
Give dreadful note of preparation.
The country cocks do crow, the clocks do toll,
And the third hour of drowsy morning name.
Proud of their numbers and secure in soul,
The confident and over-lusty French
Do the low-rated English play at dice;
And chide the cripple tardy-gaited night
Who like a foul and ugly witch doth limp
So tediously away. The poor condemned English.
Like sacrifices, by their watchful fires
Sit patiently and inly ruminate
The morning’s danger; and their gesture sad
Investing lank-lean cheeks and war-worn coats
Presenteth them unto the gazing moon
So many horrid ghosts. O, now, who will behold
The royal captain of this ruin’d band
Walking from watch to watch, from tent to tent,
Let him cry ‘Praise and glory on his head!’
For forth he goes and visits all his host;
Bids them good morrow with a modest smile,
And calls them brothers, friends, and countrymen.
Upon his royal face there is no note
How dread an army hath enrounded him;
Nor doth he dedicate one jot of colour
Unto the weary and wall-watched night;
But freshly looks, and over-bears attaint
With cheerful semblance and sweet majesty;
That every wretch, pining and pale before,
Beholding him, plucks comfort from his looks;
A largess universal, like the sun,
His liberal eye doth give to every one,
Thawing cold fear, that, mean and gentle all
Behold, as may unworthiness define,
A little touch of Harry in the night.
And so our scene must to the battle fly;
Where – O for pity! – we shall much disgrace
With four or five most vile and ragged foils,
Right ill-dispos’d in brawl ridiculous,
The name of Agincourt. Yet sit and see;
Minding true things by what their mock’ries be.

King Henry The Fifth, acto quarto, prólogo, de William Shakespeare

Fotos do Fogo

Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
A guerra deu na tv
foi na retrospectiva
corpo dormente em carne viva
revi p’ra mim o cheiro aceso
dos sítios tão remotos
e do corpo ileso
vou-te mostrar as fotos
olha o meu corpo ileso
Olha esta foto, eu aqui
era novo e inocente
“às suas ordens, meu tenente!"
E assim me vi no breu do mato
altivo e folgazão
ou para ser mais exacto
saudoso de outro chão
não se vê no retrato
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Nesta outra foto, é manhã
olha o nosso sorriso
noite acabou sem ser preciso
sair dos sonhos de outras camas
para empunhar o cospe-fogo e o lança-chamas
estás são e salvo e logo
“viver é bom”, proclamas
Eu nesta, não fiquei bem
estou a olhar para o lado
tinham-me dito: "eh soldado!
É dia de incendiar aldeias
baralha e volta a dar
o que tiveres de ideias
e tudo o que arder, queimar!"
No fogo assim te estreias
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Nesta outra foto, não vou
dar descanso aos teus olhos
não se distinguem os detalhes
mas nota o meu olhar, cintila
atrás da cor do sangue
vou seguindo em fila
e atrás da cor do sangue
soldado não vacila
O meu baptismo de fogo
não se vê nestas fotos
tudo tremeu e os terramotos
costumam desfocar as formas
matamos, chacinamos
violamos, ah, mas
será que não violamos
as ordens e as normas?
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
Álbum das fotos fechado
volto a ser quem não era
como a memória, a primavera
rebenta em flores impensadas
num livro as amassamos
logo após cortadas
já foi há muitos anos
e ainda as mãos geladas
Chega-te a mim
mais perto da lareira
vou-te contar
a história verdadeira
quando a recordo
sei que quase logo acordo
a morte dorme parada
nessa morada.
Sérgio Godinho