quinta-feira, agosto 31, 2006

V: Principezinho (1ª parte)

Abriu os olhos. Ali estava, como sempre, o quarto. O tecto céu azul cortado por nuvens brancas. Por vezes, perdia-se no tempo, observando as várias figuras criadas pelas nuvens, imaginava assim, animais, flores, faces ou simples olhares que a sua mente conduzia. Era este o seu caleidoscópio mágico. Envolvendo-o paredes creme, de cor de todos os bolos que todos os dias em todas as refeições imaginava tomar. No meio dessa cor, espalhados todos aqueles desenhos de anteriores habitantes, a partir dos quais realizava filmes mais ou menos intermináveis, os quais seriam os seus desenhos. Este era o seu mundo, este era o seu principado, e como principezinho que se preze o seu maior desejo era receber companhia, ou ir aos outros principados ver quem os habitava deixando para trás a sua rosa branca isolada naquele canto do tecto.
Surpreendentemente, a rotina do dia não o foi. Surgiu ao seu lado uma nova companhia. Imediatamente a rotina foi reequilibrada e cresceu de forma esmagadora como só ela pode ser. Como sempre desde os últimos sete anos, chegariam as enfermeiras para o banharem, depois alimentarem e volta e meia para o moverem. Seria um dia como tantos outros. Surgiria com ele os pequenos movimentos que lhe dão alguma liberdade mas que não sentia, a água do banho ocupando todos os poros da pele mas cuja frescura só conhecia quando uma ou outra gota lhe salpicava a face, o gosto da comida a preencher-lhe as papilas gustativas e claro mais importante que tudo isso os sorrisos que receberia e aos quais respondia com um brilho pessoal e indescritível mas todo ele transmissível e passível de ser apreendido por todos quanto o rodeavam.
Todos menos a sua nova vizinha.

segunda-feira, agosto 28, 2006

V: Agape?...

Os gregos antigos eram, entre outras coisas, conhecidos pela grande objectividade de conceitos que o seu léxico apresentava bem como pela grandeza do mesmo.
Um dos aspectos interessantes surgia no facto de para a nossa palavra amor terem vários termos, que utilizavam para diferentes conceitos. entre esses conceitos surge o de agapé.
Este refere-se a um tipo de amor que na liguagem corrente grega praticamente não era utilizada, mas que a cultura greco-cristã adoptou como uma nova forma de amor mais completo e que completa, o qual podendo incluir o eros ou o philia (amor de amizade) vai muito mais longe que esses conceitos.


"We must love one another or die."
Morris S. Schwartz em "Tuesdays with Morrie", de Mitch Albom publicado em 1997

sexta-feira, agosto 25, 2006

Nothing else matters

So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
and nothing else matters

Never opened myself this way
Life is ours, we live it our way
All these words I don't just say
and nothing else matters

Trust I seek and I find in you
Every day for us something new
Open mind for a different view
and nothing else matters

never cared for what they do
never cared for what they know
but I know

(...)

never cared for what they say
never cared for games they play
never cared for what they do
never cared for what they know
and I know

So close, no matter how far
Couldn't be much more from the heart
Forever trusting who we are
No, nothing else matters

Original de Metallica no album homónimo (Black Album) de 1991

quarta-feira, agosto 23, 2006

Medos

“Tenho medo de que todos os que me conhecem, tal como costumo ser, possam descobrir o meu outro lado, o mais belo, o melhor. Tenho medo de que trocem de mim, me achem ridícula e sentimental, e não me tomem a sério. Estou habituada a não ser tomada a sério, mas é justamente a Anne mais “fácil” que suporta isso; a “mais profunda” não tem forças para tanto. Empurro por vezes a boa Anne para a luz da ribalta, mesmo que seja por um escasso quarto de hora, mas logo ela tem de falar, contrai-se e fecha-se de novo na sua concha, passando a palavra à Anne n.º1. E antes que eu me dê conta, já a boa desapareceu.
É por isso que a Anne terna e simpática nunca vem à superfície na presença das outras pessoas mas é a sua voz que domina na solidão. Sei exactamente como gostava de ser, sei como sou… no íntimo, mas infelizmente, só sou assim quando estou sozinha comigo. E isto é, talvez, não seguramente, a razão por que chamo à minha natureza íntima uma natureza feliz e porque os outros chamam feliz à minha natureza exterior.”


in “Diário de Anne Frank” de Anne Frank

segunda-feira, agosto 21, 2006

Solidões que retiram a liberdade...

Absinto, de Degas, 1876

sexta-feira, agosto 18, 2006

H2o (2ª parte)

Limpo a testa.
Continuo sentada. O mundo corre, mas eu não tenho para onde. Apenas o nada, o desespero, a solidão, apenas interrompida por estas pequenas coisas lindas. Estas criações divinas que transmitem paz e por vezes me salpicam a cara com o bater das suas asas.
Aqui estou. O que fiz, ou antes o que não terei feito para que ninguém repare que exista. Um dia também eu fui algo, representei algo, senti-me parte de algo e de alguém. Mas agora, sinto-me só. Primeiro perdi o emprego, depois foi o meu marido a ir-se embora e por fim, um a um todos os meus amigos foram-se afastando, ou pior morrendo.
Quem sou? Só sei apenas o que sou, apenas mais uma Zé-ninguém aqui sentada neste parque afastado do mundo que durante todo o dia, todos os dias alimenta estes pequenos pássaros. Será que eles sabem quem são? O que são? O que representam? Ao menos não se sentem sós, cantam, brincam…
Tenho sede.
Levantou-se afastando-se do bando de pássaros que ruidosamente a rodeavam e dirigiu-se para o bebedouro. Lá sentiu o toque frio da água.
Após saciar a sede pousou o copo na mesa. Estava escuro. Nenhum ruído era perceptível. Tinha acordado como todas as outras noites com sede após aquele sonho que a perseguia. Também se sentia só, principalmente agora que estava fora da sua cidade, afastada dos seus amigos e família. Tudo por causa do seu grande sonho de criança. Sonho que tinha sido alimentado pela sua família de tal forma que agora desconhecia se realmente é mesmo seu. Como sempre Francisca tinha seguido as indicações daqueles que a rodeavam, mas ao contrário de sempre não se sentia bem, sentia-se apenas só, desapoiada, sem ninguém, e pior que tudo isso, perturbada por uma ideia constante que este não era de facto o caminho melhor para si. Precisava de mudar. Mas para onde? De que forma? Para quê?
Era um constante medo de errar, o constante medo de desapontar aqueles de quem gostava. Era o constante medo de se encontrar verdadeiramente…

quarta-feira, agosto 16, 2006

H2o (1ª parte)

É manhã.
O céu encontra-se salpicado de figuras mais ou menos definidas. Olho à minha volta. Vejo a multidão movendo-se. Continuam sem olhar. Seguem um plano que já se entranhou, diria que já se tornou parte integrante do seu ser. Eu já estive assim, já me reconheci como parte integrante desta máquina que se move e faz mover como um metrónomo com uma cadência certa e envolvente, que de tanto envolver nos aprisiona, asfixia e não nos deixa viver. Não me conhecia, nem sabia quem eram aqueles que me envolviam. Não sabia para onde iria, o que conduzia a uma incerteza interior, mas também a uma necessidade de me descobri e de achar o meu caminho. Nesta procura incessante que poderia conduzir a algo, nem que fosse simplesmente ao mesmo, mas tendo certeza de que procurei, de que caminhei, que descobri algo, nem que fosse simplesmente a simplicidade do nada.
Olho o céu. Lá no alto, pequenas agregados moleculares de água unem-se numa conjugação que culminará numa gota, que ao crescer cada vez mais, atingirá a massa necessária para vencer a inércia e assim, deslocar-se de forma incessante para a superfície terrestre juntamente com muitas outras similares, mas diferentes. Aqui à minha volta vejo algo similar. As pessoas movendo-se com um interesse por vezes similar, mas ao mesmo tempo diferente, pensando apenas no seu umbigo e não olhando para todos aqueles que caminham à sua volta no mesmo sentido e com objectivos similares.
Elevo o olhar. Vejo um desses pedaços do céu a cair. Lentamente, ultrapassa a atmosfera como todos os outros.
Recebo um encontrão. Interrompi a rotina de alguém que me olha por instantes de forma reprovadora, logo voltando à sua constância esquecendo-se imediatamente de um pequeno acidente.
Elevo novamente o olhar. Imediatamente sinto o toque suave e frio da água.
Limpo a testa.

segunda-feira, agosto 14, 2006

IV: Solidões?...

Solidão de se sentir sozinho no meio da multidão.
Solidão de estar num caminho que os outros reprovam, mas que no nosso coração é o correcto…
Solidão que nos conduz a colocar capas que inibem o mundo que nos rodeia de ver aquilo que verdadeiramente sentimos.
Essa solidão que pode infelizmente levar-nos, a sermos incapazes de sermos nós próprios e ficar presos a um ídolo que nos oprime e nos retira toda a liberdade…

“não é com os outros que fingimos, é sempre com nós próprios.”
José Saramago in A Caverna